sexta-feira, 1 de julho de 2011

Professor de verdade

Era uma vez uma professora muito maluquinha. …
As velhas professoras não entendiam nada. “Os alunos dela acham melhor ficar na sala de aula do que brincar no recreio.” E repetiam: “Esta menina é mesmo muito maluquinha.”
– Ziraldo, escritor,
no livro Uma professora muito maluquinha
(Melhoramentos, 1995)

Professor de verdade
– Lucas Medeiros Bonjardim
Texto extraído do livro Os papéis de Lucas – pequeno inventário de um adolescente, de Júlio Emílio Braz – "diariografado" pelo adolescente Lucas Medeiros Bonjardim (Ediouro, 2003)


Oigalê! Tem professor novo na área.
Biologia.
O velho Teufel finalmente se cansou da gente e foi embora. Deve ter voltado pra Santa Cruz do Sul.
Professor Cláudio. Pras gurias, que não param de babar por ele, um verdadeiro gatão de meia-idade. Usa rabo-de-cavalo. O jeans tá meio velho. O carro anda sabe-se lá Deus como de tão velho que é.
Demos a ele uma grande recepção. O vivente não disse nada. Continuou dando sua aula e fingiu que não era com ele. Teve gente que achou que ele não voltava. Acho que todo mundo quebrou a cara. Deu pra ver pelo sorriso dele quando saiu e disse:
“Cavalo manso é pra ir à missa.”
Ah, ele volta, volta sim.

(…)

O nome dele é Cláudio. Biologia. Professor de Biologia. Ocasionalmente. Na verdade, o cara vai bem mais além das mitocôndrias e das fagocitoses. O cara é 10. É um daqueles professores tão raros quanto marcantes na vida da gente. Todo mundo tem um. Até meu pai ainda se lembra de um tal professor Zorzi, de Matemática, que encheu sua vida de propósitos mais do que de números, e minha mãe vive contando historias de uma certa Irmã Frida, do Madre Imilda. Tio Nelson vive falando de um louco que ensinava História em sua escola, em Flores da Cunha, e que um dia alguns homens da polícia levaram para nunca mais. Tia Bibiana é professora e aposto qualquer coisa que vai deixar marcas tão profundas nas almas de seus alunos quanto o Cláudio deixou nas nossas.
Ele é professor no sentido mais amplo da palavra. Seus conhecimentos vão muito além da matéria que ensina. Fala de tudo e qualquer coisa. Nunca se omite. Tem opinião a respeito de tudo e a gente sabe como gente assim faz inimigos, né?
A verdade é para os fortes como a violência para os tolos e ignorantes. Nem todo mundo está preparado para ela.
Cláudio é daqueles de fazer desaparecer qualquer dúvida de nossas cabeças no momento em que abre a boca. Abre a cabeça de todos e a enche de ideias. Não as suas, mas as de incontáveis outros homens. O mais interessante é que ele sabe abrir a sua cabeça e encher com o que lhe oferecemos. Nada se perde nas aulas dele. Essa é a maior diferença dele para os outros professores, gente como a Marlene, profê de Português. Matéria. Matéria. Matéria. O falso respeito de quem pensa ser o portador de conhecimentos valiosíssimos com os quais semeará o deserto de nossas consciências e inteligências.
Cláudio ouve e não foge de nenhum assunto. De vez em quando, abandona o citoplasma e parte pra uma de falar sobre AIDS, sobre o mais recente escândalo de corrupção em Brasília.
É… vende caro suas crenças e tem personalidade suficiente para curtir o apelido que os outros professores puseram nele…
"Cláudio, o Vermelho."

Mesmo quando pintava um pai enfurecido na escola dizendo que ele estava transformando seu filho num comunista ou qualquer outra bobagem parecida, Cláudio tirava de letra, colocava pai e coordenador no bolso e seguia em frente, sorriso largo na cara, mais e mais ideias na cabeça vermelha (seus cabelos eram tão ralos quanto vermelhos).
Era um Dom Quixote escolar. Achava que podia mudar o mundo a partir de nossas cabeças. Montado no pangaré metálico que ele chamava de carro, um Fusca 66 de péssimo aspecto e grande má fama (dizia-se que ele costumava enchê-lo com suas alunas do Magistério e transformá-lo num tremendo motel sobre rodas), armado com a fartura de seu salário e protegido pela armadura sólida de suas convicções, o cara não estava nem aí para desânimos e encarava todas. No auge de seu entusiasmo, pirava direto e vivia repetindo frases do livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, seu favorito.
“Uma mente aberta pode mudar uma vida e uma vida que se transforma também transforma o mundo.”
Frase dele.
Nada quebrava seu espírito ou derrubava suas esperanças. Foi com ele que aprendemos a acreditar em tudo, a começar pela vida. Por isso, não rolou nenhuma palavra ruim e nem mesmo raiva ontem quando ele veio se despedir de nós.
A revolução estava encerrada naquela escola. Ele fora demitido. Marcharia sozinho para a próxima batalha, sedento de mentes preguiçosas e olhares descrentes.
Continuamos nossa marcha sem ele ao nosso lado, mas escolhemos um lugar e tanto para Cláudio em nossos corações e em nossas mentes.
Cláudio, o Vermelho.
Cláudio, um professor de verdade.

Se quiser saber mais sobre o livro, visite a comunidade no orkut e/ou o blog (aparentemente não oficial, mas apresenta uma boa sinopse do livro). O livro pode ser comprado com facilidade na Estante Virtual.